A ideia de que pensamos independentemente da língua que falamos inquieta muitos pensadores e cientistas.
Por Aldo Bizzocchi
Doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume).
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Essa possibilidade quase irrestrita de tradução é possível porque o "sentido geral" a que estou me referindo é algo que transcende a língua. Trata-se de uma representação mental que fazemos da realidade e prescinde de palavras. Mas tampouco se dá por imagens ou outros símbolos dotados de um significante material. Tanto que cegos de nascença, surdos-mudos e indivíduos privados da linguagem por alguma patologia são perfeitamente capazes de pensar e compreender a realidade.
Categorias
Também comprovam a existência dessa representação mental puramente abstrata situações como quando não recordamos uma palavra, mas, mesmo assim, sabemos o que queremos dizer, ou quando alguém diz algo e, tempos depois, lembramos o que foi dito, mesmo tendo esquecido as palavras exatas. A ideia de que pensamos independentemente da língua que falamos e mesmo de outros sistemas simbólicos (sons, gestos, desenhos, esquemas) é bem antiga e tem inquietado muitos pensadores e cientistas ao longo do tempo.
Aristóteles já havia postulado que o pensamento se estrutura em torno de categorias gerais (substância, qualidade, ação), de tal modo que tudo o que possamos conceber se encaixe numa dessas categorias. O raciocínio seria, então, a combinação dessas categorias ou conceitos por meio de regras bem definidas. Curiosamente, tais categorias inspiraram o que chamamos hoje de classes gramaticais: substantivo, adjetivo, verbo, etc. (Não que essas classes sejam um espelho fiel do nosso pensamento; trata-se de mera aproximação feita pelos gramáticos.) Igualmente, as regras de combinação das categorias aristotélicas deram origem, de um lado, à lógica e, de outro, à sintaxe.
No século 17, o filósofo inglês John Locke afirmou que tudo o que podemos conceber seria uma combinação de noções de base, ou qualidades (existência, extensão, forma, movimento, cor). Para Locke, haveria ideias primeiras (aquelas que não podem ser reduzidas a outras ainda mais simples) e conexões entre elas. Por exemplo, o ouro é a conjunção das qualidadesmaterial, inanimado, sólido, amarelo, brilhante, metálico, valioso, e assim por diante.
Combinatória
Afirmando que só é possível pensar por meio de algum tipo de linguagem, não importando a sua natureza, e inspirados na doutrina atomista dos gregos Leucipo e Demócrito, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein propuseram que qualquer conceito linguístico pode ser decomposto em conceitos cada vez mais simples, até o ponto em que não possam mais ser decompostos.
Decorre dessa teoria (embora os próprios autores não tenham dito isso) que o pensamento seria uma combinação sintática de conceitos que, por sua vez, seriam "pacotes" estruturados de atributos mínimos.
Fazendo uma analogia, fatos do mundo real são interações entre objetos formados de átomos ou de partículas ainda menores. Se o pensamento é a representação mental da realidade exterior, então a mente seria povoada por "objetos" (conceitos) compostos de partículas mínimas hierarquicamente organizadas, os quais interagem por meio de relações lógicas e abstratas. Isso explicaria por que substância, qualidade e ação são categorias universais e por que classes como substantivo, adjetivo e verbo existem em todas as línguas - ainda que, no plano da superfície discursiva, possam estar mascaradas em algumas delas.
Paralelamente, os estudos de Noam Chomsky sobre a aquisição da linguagem e a competência linguística demonstraram que, por mais pobres que sejam os estímulos vindos do meio, toda criança aprende a falar muito cedo e é capaz de formular corretamente frases que jamais ouviu antes.
Para Chomsky, há um inatismo na linguagem: não importa em qual língua a criança seja criada nem quanto (ou quão pouco) esforço os adultos circundantes dediquem a educá-la, ela sempre aprende a dominar o código com total competência. (Não estou falando aqui de dominar a norma culta, que, por sinal, a maioria das línguas não tem, mas de ser plenamente capaz de comunicar-se com seus semelhantes.)
Plataforma
Para explicar esse paradoxo, Chomsky postula que a aptidão linguística é inata e se dá por módulos cerebrais. É como se o cérebro fosse o hardware no qual já viesse de fábrica um sistema operacional capaz de processar qualquer software linguístico (isto é, qualquer língua). A esse sistema Chomsky chamou de Gramática Universal (GU). Assim, se o cérebro é como um computador, a GU é a plataforma (como o Windows, por exemplo) na qual roda o "software" linguístico instalado (no nosso caso, algo como o programa "português.exe"). A fala é então o produto do processamento desse programa, como o papel que sai da impressora.
Mas, se não pensamos só com palavras, a GU, sendo uma plataforma de processamento linguístico, provavelmente ainda não é o sistema de base do pensamento: deve haver um sistema ainda mais básico, que permite "rodar" não só línguas mas todos os demais códigos simbólicos já inventados ou por inventar.
Subjacente
Em 1975, o filósofo cognitivista Jerry Fodor publicou The Language of Thought ("A linguagem do pensamento"), em que propõe a existência de uma espécie de linguagem (LOT, na sigla em inglês) subjacente aos processos mentais. De modo geral, a teoria sustenta que o pensamento segue regras análogas às da língua. Só que sem palavras ou signos. Seria uma linguagem abstrata, cuja representação simbólica para fins operacionais se assemelha a equações matemáticas. Essa "linguagem", biológica (portanto, inata) e situada no nível hiperprofundo da mente, vem sendo chamada de "mentalês" pelas ciências cognitivas e pela neurociência.
Várias teorias paralelas à GU e à LOT têm sido desenvolvidas. Dentre as mais importantes estão a noêmica de Bernard Pottier, a semântica cognitiva de François Rastier e a psicologia cognitiva de Steven Pinker. Eu mesmo venho realizando pesquisas sobre o assunto, algumas já publicadas. É importante dizer que todas as teorias, apesar das diferenças, são tributárias de um mesmo princípio, já intuído pelos gregos na Antiguidade. Como diria Mário Quintana, não há nada que possamos pensar que algum grego já não tenha pensado.
A "língua" do pensamento de Aldo Bizzocchi é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.
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